terça-feira, 13 de maio de 2014

Dói-me a Vida aos Poucos


 Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. 
A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento.
Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça.


 Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga. 
 Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu.
Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata.

Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto. 
No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto, e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora. 
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. 
Como à veladora do «Marinheiro» ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. 
Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se. 

Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as cousas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que sinto.
Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena — cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas. 
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar. 
Pode ser que se não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no «Livro do Desassossego». 

Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto. 

 Fernando Pessoa, in 'Carta a Mário de Sá-Carneiro (1915) ' 

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